segunda-feira, 3 de maio de 2010

Viagem com o Santo Daime

Com alguma relutância, tomei os primeiros goles do estranho líquido que me era ritualmente oferecido. Estava lá para isso, afinal, aos quarenta e um anos já tinha fumado, cheirado, bebido, cafungado tudo que a contracultura tinha descoberto nos últimos vinte e cinco anos. Mas nada de iluminação, nem mesmo uma mísera revelaçãozinha mística, barata, corriqueira que me distinguisse entre os mortais, que me singularizasse, enfim, perante minha própria geração. Nada!, a barba branqueando, a barriga barrigando, e nada x nada.
É bem verdade que alguns “baratos” valeram a pena: embarquei na grande viagem do sleeping-bag antes que o sonho acabasse, lavei pratos pros gringos, curti o bom e velho rock dos anos ’60, catei cogumelo em bosta de zebu pra ver se virava Dom Juan. Mas qual, capricórnio com ascendente em aquário, sempre tive os pés presos à terra, e meu suor sempre transpirou razão por todos os poros.
Mas agora finalmente estava lá, no meio do mato, numa cerimônia religiosa prevista para durar a noite inteira, cantando hinos, dançando pra lá e pra cá e tomando o santo daime, ou ayahuasca, que é como o índios chamam essa bebida ancestral que traz sabedoria, paz e harmonia interior. Deu medo, mas fui fundo, meu encontro com a transcendência, caramba, não podia mais ser adiado!
Bem, a noite já ia alta, já tinha cantado e dançado adoidado, tava cansado, me sentindo ridículo, decepcionado e arrependido quando entrei na fila para tomar a terceira rodada do daime. No começo, nada que não tivesse sentido das vêzes anteriores; ligeiro gosto acridoce na boca, um certo calor interno, um bate-coração meio assustado, fundo, dentro do peito. “Tudo bem”, pensei, “não sou mesmo religioso, não tenho o dom da fé, vou segurar o sono, curtir os hinos e debitar mais essa experiência ao meu passivo existencial”.
Estava assim, imerso em pensamentos críticos, defensivos, distanciados e rígidos quando, de repente, começo a perder o contorno de pessoas e coisas à minha volta. Meio cabreiro,começo a ver “linhas” envolvendo cada corpo ao meu redor, serpenteando como se fossem pequenas fagulhas de energia, dançando, envolvendo a todos, em tudo. Fiquei meio apavorado, com medo de perder o controle, ali, no meio do mato, e saí pra tomar um pouco de ar puro. Lá fora, cada árvore, grama, galho e folha, toda a natureza vibrava intensamente. Em vão tentava encontrar algum ponto onde meus olhos pudessem se fixar em segurança: o barro da terra - VI -, meus pés cruzados - BRA -, os vira-latas preguiçosos - VÃO. Em frente, na choupana de sapé de onde vinham aqueles hinos contando verdades tão simples, todo mundo doidão, embalado na fé e no poder do daime: “é agora, cara, vai fundo nesse ‘barato’, mergulha nesse sentimento coletivo, experimenta essa sensação de perda de identidade, relaxa, fica calmo, deixa o daime te conduzir às Portas da Percepção. Confia nele, vamos, ‘TE ENTREEEEGA, CORISCO’”
[1].
Era pegar ou largar, me dissolver naquela experiência prestes a me transcender completamente, ou permanecer eu, euzinho da silva, com meu velho e calejado ego, controlado e vigilante como as mais sólidas teorias freudianas. Nessa altura dos acontecimentos, bicho, meus pensamentos chegavam como flechas, abrindo minha consciência para os limites do meu próprio ser.
Sim, a alegria e a certeza de ser possuído por uma força além de qualquer explicação racional. Sim, a evidência da realidade sem contornos, a beleza do transe coletivo, o conhecimento através da comunhão mística. Sim, o “barato” cósmico, a viagem astral, as elementais da floresta, a dança de Shiva, o caboclo sete-flechas, meu pai Omulu, o nagual guerreiro de Dom Juan.
Mas não, não era assim tão fácil, assim banal. Já não tinha mais a humildade dos que acreditam na verdade dos simples. Não, não era ainda essa porta, mágica, mas tão comportada e disciplinada que envolvia a todos na loucura de uma mesma crença. Não, a verdade é que estava só, se-pa-ra-do, condenado aos meus próprios conflitos e
contradições: “não havia porta alguma a ser aberta”, pensei, “a não ser aquela que minha existência fosse capaz de justificar”.
“EXISTIRMOS, A QUE SERÁ QUE SE DESINA? “
[2] Tudo bem, poeta, mas agora eu sabia que estava condenado a fazer minhas próprias perguntas.
Estava só, preso nas malhas e tramas de minha própria lucidez.
E, então, foi assim: meus olhos se encheram de lágrimas quando deitei, exausto, na grama molhada e fiquei olhando a lua e as estrelas lá em cima... agora eu sabia, puxa, tinha descoberto finalmente o meu “barato”. Perdido no meio daquela orgia de linhas bailarinas, de luzes, sons e cheiros, saquei finalmente minha legítima vocação existencial; saquei que essa busca mística-espiritual-filosófica passa em mim pelo pensamento lógico-discursivo, cartesiano, racional.
E, então, foi assim: deitado na rama úmida, coberto de orvalho de uma madrugada fria que finalmente entendi que minha iluminação virá através da separação sujeito-objeto, dos livros, da palavra, das virtudes do ponto e vírgula. E saquei, então, que é a razão que me ilumina, seduz e justifica, que é ela, afinal, a única capaz de me conduzir à transcendência de meu próprio ser.
E, então, foi assim: a manhã me encontrou prostrado e insone, mas leve e feliz, me sentido afinal tranqüilo, ilimitado nos limites do que sou.

[1] Romance com o Deus Diabo. Letra e música de Sérgio Ricardo, do filme de Glauber Rocha, “Deus e o diabo na terra do sol”.
[2] Cajuína, letra e música de Caetano Veloso.

Um comentário:

  1. Comigo, e outro "estímulo" -digamos assim, aconteceu algo muito semelhante. Obrigada por ter compartilhado essa tua experiência. Há algo disso e além disso no TABACARIA do Fernando Pessoa.
    I

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